sexta-feira, 27 de junho de 2025

Ter medo da dor implica realmente uma mudança de paradigma na sociedade?

 


 


Este filósofo germano-coreano tem um conjunto de ensaios publicados na editora Relógio D’Água, o seu nome aparece numa coleção ao lado de personalidades conceituadas, caso de Pierre Bordieu, George Steiner, Umberto Eco, Zigmunt Bauman, Hannah Arendt ou Michel Foucault. Este seu ensaio intitulado A Sociedade Paliativa não desmerece das interrogações, tantas vezes provocatórias, que Chul Han põe em debate público. No caso presente, aborda o tema da expansão da algofobia, o medo à dor na sociedade do nosso tempo. A sua reflexão coincidiu com a pandemia da Covid-19, mas vai um pouco mais atrás, há crise do fentanil nos EUA que ainda não se extinguiu, observa que a tolerância ao sofrimento leva a que se procure anestesias em permanência e que em termos comportamentais, um tanto como já Zigmunt Bauman desenvolvera no seu ensaio sobre a modernidade líquida, todo o sistema relacional é uma procura de evitar conflitos que descambem em situações dolorosas. Não discordando de que há dados claros em que a sociedade evita a todo o custo a dor física ou psicológica, abrindo novos caminhos ao chamado desenvolvimento pessoal, põe-se em dúvida que estamos a caminho de uma democracia paliativa. Mas vejamos em síntese as grandes questões que o filósofo põe em cima da mesa.

É mais do que duvidoso que a política esteja instalada numa zona paliativa, isto quando temos presente que há uma extrema-direita ativa que propõe reformas drásticas suscetíveis naturalmente de provocar dor, a resposta do sistema político existente a este confronto é a de procurar consensos – mas mesmo estes consensos têm que gerar tensões, a democracia permanecerá como o sistema mais apetecível enquanto as classes médias não forem reduzidas à precariedade.

O filósofo adiante que a sociedade paliativa é coincidente com a sociedade do desempenho, e nesta condena-se a dor ao silêncio, não se pode verbalizar a dor. Outra questão discutível, nunca como hoje se expõe no ecrã televisivo, nas edições escritas e nas redes sociais a natureza da dor, embora no essencial se procure a sua superação, basta pensar nos testemunhos sobre doenças terminais ou temíveis doenças crónicas.

Sim, é verdade, há uma imensa cultura da agradabilidade, a arte é transferida para produtos culturais, aprazíveis para a cultura de massas. É verdade que o design se torna mais importante que o valor de uso e que os bens de consumo se podem apresentar como obras de arte, mas tudo tem que ser agradável, os artistas passam a estar em conformidade com o mercado. E também é verdade que o desempenho do político não se exprime propriamente só pelo sorriso feliz ou pelo capital emocional positivo, há desempenhos devastadores, inquietantes, imprevisíveis, esperamos certas alocuções como capazes de nos magoar ou alterar profundamente a vida – basta pensar no comportamento do presidente norte-americano.

Dá-se completa razão a Byung-Chul Han quando ele assevera que não há sociedade sem dor, apesar dos analgésicos, da medicalização da dor. Escrito, como já se disse, em pleno tempo da pandemia, o filósofo terá tomado aquele tempo em que o vírus nos transfigurou a existência como um processo de sobrevivência, uma sociedade em permanente confronto com a morte, e, em meu entender, tece observações que o tempo se encarregou por mostrar a falsidade: “A histeria da sobrevivência torna a vida radicalmente transitória, ela é reduzida a um processo biológico. A vida é despojada de qualquer narrativa com sentido, fica nua e mesmo obscena. Uma vez que perdemos todas as práticas culturais que dão estabilidade à vida, impera a histeria da sobrevivência. Hoje, é-nos particularmente difícil morrer, pois já não é possível terminar a vida de uma forma significativa. Ela termina de uma forma intempestiva.” Dirá mais adiante que o vírus da Covid desencadeou uma crise imunológica, que a pandemia se comporta como o terrorismo, nos aeroportos deixamo-nos dominar por medidas de segurança humilhantes – em que é que uma medida vital de segurança pode caber dentro do conceito de algofobia, o filósofo não está a confundir os territórios da segurança vital e da dor que queremos manter aplacada?

Dirá discorrer sobre o sentido e a astúcia da dor. Dirá que esta constitui a base para diferentes formas de violência, que os analgésicos pouco podem fazer para dar à nossa sociedade um sentido. Dirá, que a dor articula a vida, marca fronteiras, só através das dores ficamos a saber como funcionam os nossos órgãos, o mundo sem dor é um inferno, porque a dor é realidade, e a anestesia permanente na sociedade paliativa tira a realidade ao mundo. “Sinto dor, logo existo”.

Com exemplos na grande literatura, sabemos que obras clássicas são guiadas pela dor, a anestesia generalizada da sociedade faz desaparecer totalmente a poética da dor, a poética e a estética. E de novo concordamos com o filósofo quando ele assevera que é só através da dor que a mente alcança novo conhecimento. E rendemo-nos sem qualquer hesitação ao que ele escreve no termo do seu ensaio:

“A vida sem dor, com felicidade permanente, deixará de ser uma vida humana. A vida que persegue e expulsa a sua negatividade eleva-se a si própria. A morte e a dor andam de mãos dadas. Com a dor, a morte é antecipada. Quem quer eliminar toda a dor também terá de abolir a morte. Mas a vida sem morte e sem dor não é uma vida humana, mas uma vida morta-viva. O homem anula-se a si mesmo para sobreviver. Talvez venha a alcançar a imortalidade, mas à custa da vida.”

Estamos perante um ensaio provocatório onde se fala do medo à dor, nos artifícios da felicidade, nas consequências do pânico pandémico; onde se recorda que a dor aprofunda a relação com Deus, como o sofrimento físico e psicológico possui a capacidade para fazer avançar a humanidade, porque o que dó é precisamente a falta de sentido persistente da própria vida.

Temos uma noção concreta do que nos é imposto um modelo paradigmático assente na anestesia, no embotamento mental, vivemos numa atmosfera de hedonismo, cercados de promessas de pão e envolvidos pela gritaria do circo, tudo acaba no tédio, a despeito de a máquina prometer a felicidade permanente. É nesta dimensão que A Sociedade Paliativa é credora de um intenso debate, pois não é pelo medo à dor que podemos lutar pelo bem-estar, pela felicidade e pelo otimismo.

 

Mário Beja Santos




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